(*) Por José Ruy Lozano
A palavra “narrativa” é
bastante conhecida. As pessoas de mais idade cresceram ouvindo seus pais e avós
contando histórias e aprenderam a produzir narrativas na escola,
principalmente nas séries iniciais. O universo dessa narrativa, no entanto, é
pejorativamente associado às fábulas e aos contos maravilhosos, ligado
necessariamente ao mundo da infância. No mundo dos adultos, informa-se,
diz-se, descreve-se, opina-se, twitta-se,
fofoca-se, mas muito pouco se narra. Na sociedade contemporânea em particular,
o espaço da narrativa no meio familiar encontra-se cada vez mais reduzido,
sitiado pelo distanciamento e pelas novas mídias.
Para esclarecer a
importância social de “contar histórias” e seu eventual desaparecimento no
mundo moderno, vamos tentar estabelecer um contraste entre passado e presente,
a fim de descobrir a origem e os desdobramentos de muitos dos processos cuja
trajetória vivenciamos hoje.
No mundo da tradição,
anterior ao mundo moderno, a narrativa associava-se à experiência. O saber
feito da experiência do passado e da vivência do mundo se tornava fonte de
histórias, passadas oralmente de geração em geração, ou, nos meios letrados,
por meio da escrita. O discurso do narrador continha intenções educativas: os
enredos guardavam ensinamentos, justificavam provérbios ou sustentavam
conselhos.
O aconselhamento
tradicionalmente se configurava como necessidade social: tratava-se da
transmissão do saber adquirido pelos mais idosos e experientes ou por aqueles
que retornavam ao lar, que vieram de longe e carregavam conhecimentos
inéditos. Ou mesmo pelos que jamais deixaram sua terra e sua gente, mas as
conheciam como ninguém.
O narrador
mostrava-se, assim, como portador de uma sabedoria especial. Mais que responder
diretamente às perguntas, sugeria, por meio de suas histórias, possibilidades
de respostas construídas pelo conjunto de sua vida e do passado da comunidade.
À sua experiência mesclava a vivência dos outros, incluindo também em seus
enredos o que ouviu ou leu.
Portanto, o
aconselhamento elaborado internamente, na substância viva da vida, tinha o
nome respeitável de sabedoria. Se a arte de contar histórias hoje está
acabando, talvez a sabedoria esteja em processo de extinção. O mundo moderno
preza “notícias” e não “narrativas”. Vivemos em um mundo em que a rapidez
dominou nossa rotina, transformando o bate-papo e a troca de experiências sem
utilidade objetiva em algo raro ou episódico.
Dessa forma, estamos
cada vez mais privados de uma possibilidade que parecia estável e
imprescindível: a possibilidade de trocar experiências. Adquirimos
intensamente informações úteis a curto prazo e deixamos de lado o conhecimento
experimentado ao longo do tempo. Nesse quadro, há pouco espaço para o encantamento.
Todos os dias chega pelo noticiário uma enorme multiplicidade de fatos já
acompanhados de explicações especializadas.
Mas o encanto e a arte
da narrativa estão em não haver explicações prévias. Eventos extraordinários
podem ser narrados com grande exatidão, mas o contexto psicológico do enredo não
é necessariamente explicitado ao leitor. A interpretação é livre, e isso faz
com que qualquer narrativa atinja sentidos que não existem na mera informação.
Os efeitos dessa
configuração social que sufoca a narrativa são nefastos. O primeiro deles é a
crise da atenção. Se nada é permanente, muito pouco deve ser registrado.
Informações instantâneas têm duração curta: o interesse por elas é passageiro
ou conjuntural. Outro efeito é a diminuição da imaginação. Ela, paulatinamente,
tem desaparecido das redações escolares, por exemplo. Quando um professor
solicita uma narrativa, esta vem muitas vezes recheada de elementos da
realidade mais cruel ou dura possível; o espaço do possível ou do imaginário é
drasticamente reduzido, e a consequência disso é, cada vez mais, um enorme
conformismo com a realidade que está posta. Não há outro mundo possível, só
este, do presente, do agora, objetivo e “real”.
Se a informação
simplesmente reproduz a realidade, a narrativa pode ter o condão de
transformá-la, por meio da imaginação de um mundo diferente, inusitado. Sem a
imaginação, estaremos condenados a repetir o cotidiano indefinidamente, sem
vislumbrar saídas ou respostas que transcendam a realidade impositiva.
E o desaparecimento da
arte de contar histórias na família? Qual o papel da memória, do passado, dos
mais velhos, na educação dos mais jovens? Devemos ressaltar que uma das
funções da narrativa é produzir a lembrança, perpetuar o que foi, imprimir
alguma marca duradoura no mundo. A simples existência não garante a preservação
do que fomos ou pelo que passamos. A memória familiar só terá espaço no futuro
das crianças pelo cultivo das histórias dos mais velhos, dos antepassados,
representativos do sentido da presença e da inserção dos membros da família no
mundo.
Além disso, o cultivo
da narrativa em família engrandece de sentido o que vivemos, pois os fatos
eventualmente narrados vêm atravessados pela experiência de quem os conta, o
que os enriquece e os torna mais densos de significado. A narrativa conserva
suas forças por muito tempo, permanecendo na lembrança muito além do dia em que
foi produzida. Se queremos ensinar algo, o exemplo e a narrativa, portadora de
saberes e plena de vivência coletiva –– de cultura, portanto ––, são os grandes
veículos com os quais podemos contar.
(*) José Ruy Lozano é professor
do Ético Sistema de Ensino (www.sejaetico.com.br), da Editora Saraiva, e
licenciado em ciências sociais e letras pela Universidade de São Paulo
(USP)
One Response to “A narrativa como memória familiar”
Excelente conteúdo. É exatamente nesta linha que tenho escrito em coluna no portal Aberje - http://www.aberje.com.br/acervo_colunistas_ver.asp?ID_COLUNISTA=18 . Já fui no site Seja Ético e pedi contato com o autor. Obrigado, Juliano e turma do blog.
Postar um comentário